Começar a escrever não é uma tarefa fácil. Não é necessariamente agradável, às vezes, é apenas necessário. Agora, escrever um relato já requer um compromisso com a dança dos acontecimentos. E esse marco temporal da dança dos acontecimentos impressos no corpo gordo e feminino revela as cenas do filme RELATO NÚMERO UM (8’6”, 2020), dirigido e interpretado por Elizabeth Caldas.
O filme poderia ser um relato paralelo, estático e impregnado da consolidação das ilusões e expectativas em torno da palavra “sucesso”. No fundo todo relato alimenta a esperança do “sucesso” alcançado ou, consequentemente, como uma partícula da trajetória para o “sucesso”. Porém, não é o que Elizabeth Caldas propõe ao espectador.
Primeiro, nosso olhar é apresentado a geografia da rua, há uma casa antiga do outro lado e uma grande mangueira. Ironia ou não, coincidência ou não, a manga é uma das frutas mais calóricas, encorpada, cheirosa e que povoa o nosso imaginário do desejo, ao passo que, é defendida quase sempre por uma memória afetiva.
Saindo desse plano aberto, proporcionado pela vista da varanda, entramos em uma casa. Na verdade, o olhar sempre esteve dentro da casa. E a fotografia do curta-metragem liga quase todos os cômodos da casa de maneira a apresentar outra cartografia, outras emoções da personagem autobiográfica: objetos domésticos – corpo – corpo objeto – corpo gordo – aversão – solidão.
O estado pandêmico irá acabar um dia. Mas, o roteiro nos alerta para o estado ameaçador e o isolamento anterior de um corpo, no qual a sociedade ainda insiste em reduzir medidas, padrões de beleza e comportamentos. O corpo – corpo objeto – corpo gordo ainda é oprimido e desafiado. É colocado a risco e em risco, faz parte dos termos no topo da lista mais temida “grupo de risco”.
Nesse contexto, a direção e interpretação não demoram a abalar nosso tédio em relação ao isolamento social e a catástrofe de literalmente morarmos no Brasil. Como descolonizar os corpos? Os tamanhos das roupas no varal? Como fazer um cinema de e em isolamento que reverbere nas lacunas do olhar e aceitar o outro como é?
É fato, o cinema produzido na pandemia do Covid-19 também abalará nossa relação com as salas e salas, sejam elas de cinemas ou da nossa própria casa com as plataformas de streaming. E isso, RELATO NÚMERO UM, é um belo exemplo. De um lado, o peso e aversão dos isolamentos. E do outro, a necessidade de dizer “comecei”, “comecei”, “comecei” … a escrever, a dançar, a fazer cinema dentro de casa.
Assim, descolonizar é existir, resistir e infiltrar as estruturas sociais com as armas possíveis, com os medos reais e com os corpos presentes na dança dos acontecimentos. O importante é começar e se for leve e fluído, que se prossiga nas sucessões de relatos, no ato contrário da palavra gatilho “sucesso”.
https://alagoar.com.br/relato-numero-um/
Híbrido, 8 min e 6 seg., 2020
Direção: Elizabeth Caldas
FICHA TÉCNICA
Direção, Roteiro, Fotografia, Montagem e Atuação de Elizabeth Caldas
Produção de Helena Marques e Elizabeth Caldas
Provocação Corporal de Jacque Jordão